Estórias e memórias
Busco para além dos passos
Lentos
A frescura das hortas
Quando as regadeiras eram levadas
De água em cacho
A correr entre cômoros de terra
Adubada pelo suor
Dos corpos fartos de labuta
E no cimo das nogueiras altas
Os melros vinham esperar o momento
De dessedentar os bicos negros
E as penas lustrosas.
Busco para além das memórias
Intermitentes
O martelar sibilino do travão
Das noras
Quando o engenho de alcatruzes
Trazia do fundo do poço
A água fresca escorreita
Que lançava no lastro do tanque
Fundo dos banhos estivais
Enquanto o jumento de olhos vendados
Se esforçava na tarefa de curar
A sede dos couvais viçosos.
Busco o rumor da fadiga
No aluvião das cantigas morenas
Ao cair das tardes
Quando os carreiros eram estradas
Largas de alvoroços
E os namorados se davam as mãos
Em silêncio
Para dizer calados do amor
E das canseiras
Com olhos mais fundos que o longe
E lábios mais secos que a espera
Dum beijo roubado de fugida.
Desato o nó da solidão que é
Saudade e martírio
E penduro no cocuruto das estrelas
Ao rés da lua cheia
Os vaga-lumes mentirosos
Que prometiam um tostão
Quando faltava o pão
E traziam luz às noites de calma
Quando as soleiras das portas eram o palco inteiro
De estórias com enredos mágicos
Onde os homens eram gente boa
E as mulheres mães e avós muito belas!
Se uma lágrima vier
Há-de bater primeiro
Que assim são as lágrimas educadas!
Lágrimas de quem olha e sente
Que as amoras colhidas nos silvados
Já não têm o sabor de então;
Os silvados venceram o medo
E galgaram por cima dos carreiros velhos!
Como as hortas se entregaram aos canaviais
Das margens dos ribeiros sazonais,
Talvez enamoradas pela frescura da sombra…
E os melros já não esperam o tempo
De molhar o bico…
Nas planícies e nos planaltos,
Nos recantos e nas largas quintas,
Já não se ouvem os burros zurrar
A sede e o cansaço da nora velha!
A nora morreu na podridão do abandono
E os burros adormeceram na inércia
Dos extintos
Como animais sem história
Ainda que personagens de estórias nem sempre
Felizes e valorosas.
Os homens e/imigraram para a selva
E as mulheres construíram lares em socalcos
Sobrepostos, com janelas para o nunca.
Rezam as crónicas de pouco entendimento
Que o campo tem outras virtudes
E outras aptidões…
De facto… Quando no lugar do trigo nasce o cardo
E no lugar da horta cresce o silvado,
Que colheita obteremos do nosso desapego,
Que não seja a negação do chão
Donde nos vem a vida?
E se negamos a vida
Que fazemos vivos
Neste viver enfadonho?
Em 08.Jul.2010, pelas 15h45